Mossoró, 21 a 25 de novembro de 2016

 Povos e territórios, construindo e transformando o Semiárido

 De um milhão de mortos a um milhão de cisternas

Há trinta anos, quando lutávamos para enterrar uma ditadura civil-militar e  reconstruir nossa democracia, no Semiárido um milhão de pessoas morriam em decorrência dos efeitos da seca e da total ausência do Estado. Centenas de milhares migravam de suas terras em tristes partidas para outras regiões. Tantos outras e outros vagavam sem perspectivas que não a morte. Tantas e tantos foram explorados nas indignas frentes de serviço. As políticas de combate à seca só geraram mais mortes, miséria, fome, sede, doenças, escassez, saques e mancharam o mapa do Brasil. Eram- nos apresentadas soluções humilhantes e que tiravam o que ainda nos restava de vida e dignidade.

 Aquela realidade ficou no passado. Vivemos hoje o quinto ano de uma estiagem  ainda mais severa e nenhum ser humano teve sua vida ceifada pelos efeitos da seca. Esta nova realidade resulta de políticas de convivência com o Semiárido, pautadas  nas estratégias e práticas construídas e desenvolvidas pelos muitos povos do Semiárido que se articulam na ASA. Agricultoras e agricultores, organizações e centros de pesquisa contribuíram para que estas práticas se tornassem políticas públicas, rompendo com esse ciclo de negação de direitos e de morte. Um milhão de cisternas, um milhão de famílias com acesso à água potável dão mais vida à paisagem do Semiárido. Construir a convivência com o Semiárido é romper com 500 anos de negação de direitos e com o jogo político que alimenta a indústria da seca.

Essa mudança de paradigma foi construída passo a passo pela incrível força organizativa e pela criatividade dos povos do Semiárido, e só foi possível porque se estabeleceu uma nova relação entre Estado e Sociedade, na qual a sociedade civil organizada teve vez e voz, participando, em parceria, da formulação, da execução e do controle de políticas públicas.

Anunciamos os Direitos Conquistados

 O Semiárido brasileiro hoje é reconhecido pela força, autonomia e capacidade organizativa do seu povo. Juntos, construímos o maior programa de captação e armazenamento de água da chuva do mundo, respondendo aos complexos desafios planetários das mudanças do clima e da escassez de água. A convivência com o Semiárido é o nosso jeito de enfrentar os efeitos das mudanças climáticas, de preservar a Caatinga e o Cerrado e de produzir de forma agroecológica. Articulamos  e executamos projetos e ações de armazenamento de água e forragem, resgate e conservação de sementes crioulas, fundos rotativos, organização e empoderamento de mulheres e jovens, democratização da comunicação, de auto-identidade e reconhecimento de povos indígenas e comunidades tradicionais, de educação contextualizada para convivência com o Semiárido, produção agroecológica e economia solidária. Passos iniciais, mas fundamentais, rumo à convivência com o Semiárido foram dados. Eles se materializam em conquistas que representam a autonomia de:

  • mais de 4 milhões de pessoas com acesso à água para consumo humano;
  • mais de 600.000 pessoas com acesso à água para a produção de alimentos;
  • mais de 3.500 escolas com cisternas que possibilitam a continuidade das aulas para mais de 175.000 estudantes;
  • mais de 1.000 Casas de Sementes estruturadas por mais de 20.000 famílias, dentre as quais temos centenas de guardiãs e guardiões que protegem a riqueza genética acumulada pelos povos da região.

As políticas de convivência com o Semiárido possibilitaram que avançássemos na conquista de uma vida digna, em contraposição às políticas de combate à seca, historicamente implementadas em nosso território, que geraram e reforçam múltiplas injustiças e desigualdades, concentrando terra, água, saber e poder.

Nossa caminhada tem possibilitado a troca de conhecimentos e ampliado a capacidade dos povos do Semiárido de promover seu bem estar e de construir estratégias para enfrentar seus problemas. Esses saberes acumulados servem de inspiração e fonte de aprendizados para outros povos e nações, tanto em relação ao acesso à água e à soberania e segurança alimentar quanto em relação à gestão de programas construídos em parceria com o Estado.

Sabemos o valor de cada direito conquistado e sabemos que ajudamos a construir um outro Semiárido, mas também sabemos que muito há para ser construído. Mais de

350.000 famílias ainda não têm sua cisterna de água para beber; mais de 800.000 famílias não têm cisterna para armazenar água para produção; muitas comunidades veem ameaçada sua capacidade de guardar suas sementes. Os desafios das mudanças do clima exigem maior atenção à captação de água de chuva também em áreas urbanas e soluções para o reuso de água. Muitas são as famílias que clamam por reforma agrária, muitos são os povos indígenas e comunidades quilombolas que  lutam pelo reconhecimento de seus direitos territoriais. Não assistimos às  nossas lutas, tampouco ouvimos nossos sotaques nos grandes meios de comunicação. O respeito à diversidade sexual e religiosa persiste como desafios que mal começamos a enfrentar.

Nossos sonhos e nossas lutas mudaram muito o Semiárido, mas queremos avançar. Não aceitamos retroceder! Semiárido Vivo, Nenhum Direito a Menos!

Denunciamos os Direitos Ameaçados

 Enfrentamos, no momento presente, duros golpes contra nossas conquistas e nosso futuro. A lógica perversa de deixar de investir na garantia de direitos sociais para alimentar a ciranda financeira dos ricos está sendo implementada de forma avassaladora. Profundos cortes orçamentários vêm sendo feitos nos programas sociais, inviabilizando políticas de apoio à agricultura familiar, a povos e comunidades tradicionais, a garantia de segurança alimentar e nutricional. Esta estratégia política de ação se manifesta de forma assustadora na proposta de emenda constitucional que visa congelar os investimentos sociais nos próximos vinte anos.

A extinção de ministérios e secretarias voltados ao desenvolvimento agrário, aos direitos humanos, à igualdade racial e às políticas para mulheres exemplificam o retrocesso político e social que estamos vivendo e que não são as únicas perdas. Os cortes e/ou enxugamento de programas públicos, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), o “Minha Casa, Minha Vida” e o cancelamento da contratação da assistência técnica rural comprovam a diminuição da importância da agricultura familiar e camponesa para os atuais governantes. O Projeto de Lei Orçamentária para o ano de 2017 reduz 630 milhões de reais do investimento nas políticas publicas que atendem à agricultura familiar e camponesa, aos povos e comunidades tradicionais, à reforma agrária e ao acesso à água. Essa é a mensagem clara do atual governo para nosso campo, para nosso povo e para nossa gente.

A outra face do retrocesso que enfrentamos é o aprofundamento da ofensiva de criminalização contra os movimentos e organizações sociais e suas lideranças, que nos remete aos sombrios tempos da ditadura. Há um endurecimento da violência e da repressão contra os setores organizados da população em luta por seus direitos e que estão sofrendo os efeitos diretos dessa mudança de comportamento institucional, expresso nas forças policiais e jurídicas, com apoio do poder executivo e de setores do poder legislativo. Coerções, grampos, prisões, constrangimentos, despejos, táticas de força e arbítrio, que se agravam a cada dia.

É importante destacar que este foi, também, um golpe midiático, possibilitado pelo monopólio das concessões de rádio e TV do país. Assim, é impossível pensarmos  uma nação justa sem democratizarmos a comunicação. É preciso uma revisão ampla dos contratos e concessões e o estímulo de processos comunitários e populares de comunicação.

Neste momento em que temos um projeto de Estado submisso aos interesses do capital financeiro, das grandes corporações e do agro-hidronegócio que avança no Brasil, se impõe mais do que nunca a necessidade de fortalecermos nossa união,  nossa organização e nossa capacidade de resistência e de luta. É necessário somar forças aos movimentos e articulações companheiras no Brasil e no mundo e criar espaços de convergência para fortalecer as pautas comuns. Somos desafiados a  ocupar espaços para garantir a continuidade de nosso projeto de convivência com o Semiárido, contribuindo, assim, com um projeto de Nação soberana e, de fato, democrática.

SOMOS POVO DO SEMIÁRIDO QUE RESISTE E CONSTRÓI A CONVIVÊNCIA

 Construção de Forças e Convergências para a Luta

 A convivência com o Semiárido nos ensinou a força da resistência e da resiliência, nos ensinou que nossos sonhos e nossas lutas mudam o mundo. Somos muitas e muitos e contamos, ao longo de nossa história, com o fundamental apoio de agências de cooperação, governos e instituições públicas e privadas. Nossa diversidade nos fortalece e somos  desafiadas  e desafiados a criar convergências  que   potencializem nossas forças na afirmação da democracia e dos direitos. Somos desafiadas e desafiados a inovar e ampliar nossa capacidade de lutar. É imperativo que fortaleçamos nossas raízes, em cada comunidade, defendendo nossos territórios, nossos direitos, nossas políticas, nossas conquistas.

Somos herdeiras e herdeiros das lutas de Canudos, do Quilombo dos Palmares, de Caldeirão, de Pau de Colher. Somos herdeiras e herdeiros de Ibiapina, de Margarida Alves, do Conselheiro, de Pe. Cícero, do Beato Zé Lourenço, de Nísia Floresta, de Zumbi e Dandara de Palmares, de Josué de Castro. Somos o povo do Semiárido e em nossos territórios resistimos e lutamos, transformando desafios em conquistas!

Pela manutenção das políticas de convivência com o Semiárido

 Repudiamos as novas formas de dominação, inspiradas na velha prática do coronelismo sertanejo, que tem o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS) como símbolo e que excluem as populações e fortalecem a política do combate à seca.

Exigimos a continuidade de investimentos em programas e políticas, como o Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC), o Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2), Sementes do Semiárido, Cisternas nas Escolas, PAA, PNAE, Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER), Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida, Seguro Safra, Pronaf, Aposentadoria Rural, que possibilitaram a saída do Brasil do Mapa da Fome e, sobretudo, garantiram uma vida digna as mais de 23 milhões de pessoas que hoje vivem no Semiárido.

Assumimos a luta pela Reforma Agrária junto a diversos movimentos e organizações populares, na perspectiva da democratização dos territórios (onde povos são encurralados pelo monopólio da terra por fazendeiros e grupos ligados ao agro- hidronegócio) e na perspectiva de acesso pleno à terra de tamanho adequado às realidades Semiáridas.

Cobramos que o atual governo honre os contratos pré-estabelecidos, a exemplo daqueles firmados com a ASA para a execução do Programa de Formação e Mobilização Social para a Convivência com o Semiárido, no qual ainda são devidos recursos na ordem de R$ 70 milhões.

Para avançarmos na construção de um Semiárido Vivo e de uma sociedade mais justa e igualitária

 Assumimos o fortalecimento da luta em defesa da democratização da comunicação junto a outras redes e fóruns, além de fazermos incidência política sobre o tema, especialmente no que se refere à regulamentação da mídia. Também queremos avançar na formação das comunicadoras e comunicadores populares nos territórios  do Semiárido e no apoio aos meios de comunicação populares.

Assumimos priorizar a participação das juventudes com suas pautas, debates e anseios nos fóruns microrregionais, estaduais e nacional, contribuindo com a unificação das lutas no campo e na cidade pela garantia de direitos. Damos todo  nosso apoio àqueles e àquelas que estão, nesse momento, ocupando escolas e Universidades em repúdio à “PEC da Morte”.

Assumimos a luta por escolas no campo, que valorizem os saberes do campo e que garantam a interação com a comunidade onde se encontram.  Colocamo-nos contrários ao processo criminoso de fechamento das escolas, da reforma do ensino e de uma pretensa escola sem partido. A favor de uma Educação Pública e de qualidade, lutaremos pelas condições adequadas e necessárias para que professoras e estudantes possam vivenciar um processo educativo adequado às necessidades e potencialidades da região, em especial com acesso à água para consumo humano, não interrompendo o ano letivo em períodos de estiagem prolongada.

Assumimos o compromisso com o fortalecimento da auto-organização das mulheres do campo, entendendo que o empoderamento das mulheres só é possível através da criação de espaços formativos, grupos e organização da luta feminista. Afirmamos a necessidade urgente da ASA em assumir como política a equidade de gênero dentro das instâncias e espaços organizativos e decisórios da rede. Não existe convivência com o Semiárido sem o enfrentamento da cultura do estupro e da violência contra as mulheres nas suas várias dimensões, abrangendo a violência física, violência psicológica, violência patrimonial. É preciso incidir politicamente para a ampliação da Lei Maria da Penha para o campo. Vamos lutar pela desconstrução da cultura do machismo e afirmar os princípios feministas, fortalecendo ações dos movimentos de mulheres e a Marcha das Margaridas e das Mulheres Negras. Sem feminismo não há convivência com o Semiárido!

Seguimos unidos na luta por um modelo de desenvolvimento que fortaleça uma  nação soberana e democrática e reafirmamos nosso compromisso com a soberania dos povos.

É NO SEMIÁRIDO QUE A VIDA PULSA, É NO SEMIÁRIDO QUE O POVO RESISTE!!!!